A palavra chave que caracteriza o estado da
queda do homem é “separação”; o pecado, corrompendo todo o nosso ser,
mantendo-nos sob uma condição de mente iníqua e reprovável, separou-nos de Deus
e, por via de consequência, afetou o nosso aspecto relacional, separando-nos do
cultivo sadio e sem barreiras de relacionamentos com o próximo, conosco mesmos
e com a natureza.
Com
a queda, o homem entrou em um estado de inimizade com Deus, passando a negar a
soberania dEle sobre todas as coisas criadas, inclusive sobre si, bem como não
Lhe dando a glória devida como criador; o homem, que inicialmente extraia de
Deus toda a sua identidade, valor como pessoa e destino, passa por um processo de
degradação de sua personalidade no qual passa a extrair a sua identidade das
coisas criadas, ou, de acordo com as expressões utilizadas em Romanos 1:25, muda
a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do
Criador.
O texto de Romanos 1:18-25 traz de forma
explícita os efeitos da queda, asseverando que o homem em sua condição natural,
morto em seus delitos e pecados, não nascido do Espírito Santo encontra-se
nesse estado de separação de Deus, sendo entregue a uma mentalidade maligna e
sujeito toda sorte de paixões, perversões e desejos egoístas, conforme se
depreende do texto abaixo transcrito:
O homem é um ser adorador por natureza e
estrutura intrínseca, isto é, ele extrai sua identidade daquilo que adora,
daquilo que atribui como fonte de valor para si, portanto, se ele não adora a
Deus, passará a adorar as coisas criadas, fazendo das mesmas o eixo sobre o
qual sua vida gravitará e, assim fazendo, será transformado à imagem e
semelhança das coisas que adora e será tão vazio quanto elas. Neste sentido, o
Salmo 115:4-8 assim veicula a respeito da idolatria:
4
Prata e ouro são os ídolos deles, obra das mãos de homens. 5 Têm boca e não
falam; têm olhos e não veem; 6 têm ouvidos e não ouvem; têm nariz e não
cheiram. 7 Suas mãos não apalpam; seus pés não andam; som nenhum lhes sai da
garganta. 8 Tornem-se semelhantes a eles os que os fazem e quantos neles confiam
(ARA, grifos nossos).
E também o Salmo 97:7
dispõe: “Sejam confundidos todos os que servem a imagens de escultura, os que
se gloriam de ídolos; prostrem-se diante dele todos os deuses” (ARA). O texto
citado traz uma palavra interessante quanto ao ciclo de formação da idolatria,
qual seja o verbo “confundir”, pelo que se infere que o homem em sua condição
decaída e idólatra das coisas criadas padece de estado de confusão quanto à sua
identidade. O dicionário Michaelis assim define a palavra confusão:
confusão
con.fu.são
sf
(lat confusione) 1 Ação ou efeito de
confundir. 2 Estado do que se acha aturdido: A confusão do motorista
originou-se da balbúrdia do trânsito. 3 Dir Mistura de coisas pertencentes a
diversos donos. 4 Dir Modo de extinção da obrigação pela reunião, na mesma
pessoa, das qualidades de devedor e credor relativamente à mesma coisa ou
obrigação. 5 Falta de ordem ou de método. 6 Tumulto, revolta, barulho. 7 Estado
do que encontra dificuldade em discernir. 8 Falta de clareza. 9
Embaraço, causado pela vergonha de alguma falta. 10 Perplexidade. Antônimos
(acepções 2, 7, 8 e 10): clareza; (acepções 5 e 6): ordem. C. das línguas:
impossibilidade em que, segundo a Bíblia, se acharam os operários da torre de
Babel, de se entenderem mutuamente. C. de poderes: estado de um governo em
que os poderes estão mal limitados ou se impedem uns aos outros. C. mental,
Psiq: estado mental caracterizado pela mistura de ideias, a qual conduz à
perturbação do entendimento e consequente perplexidade (grifo nosso).
Dentre as acepções da
palavra “confusão”, a que melhor descreve a condição da queda é a dificuldade
de discernir, ou melhor, a incapacidade de discernir as verdades espirituais, o
que está em consonância com 1 Coríntios 2:14, no sentido de que o homem natural
não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode
entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente.
O homem em seu estado
natural de queda, portanto, é incapaz de discernir as verdades espirituais,
inclusive a verdade fundamental a respeito de sua identidade, criado à imagem e
semelhança de Deus para conhecê-lo e desfrutar de íntima comunhão com Ele e do
Seu amor incondicional e, por via de consequência, devido à separação de Deus,
sofre de uma “solidão primal”, um vazio infinito que só pode ser preenchido
pela presença de Deus e, para compensar e reparar este vazio e solidão, ele
passa a se distorcer e se contorcer em direção as coisas criadas para das
mesmas extrair sua identidade e, assim, a iniquidade da idolatria vai se
formando no coração humano, o que, em essência, nada mais é do que amar a si
mesmo usando pessoas e coisas como meio, o que gera um “eu” falso e usurpador
da verdadeira vida de Deus, um “eu” fragmentado, partido e separado de Deus e
faminto da necessidade insaciável de se autoafirmar para existir. Neste
sentido, as palavras de Leanne Payne:
“Nascemos
incapazes. Logo que somos plenamente conscientes descobrimos a solidão”,
escreveu C. S. Lewis. Nascidos solitários, tentamos nos encaixar, ser o tipo de
gente que faça as outras pessoas gostarem de nós. Devido a essa carência e
extrema necessidade de afirmação dos outros, acabamos nos comprometendo –
usando qualquer máscara, ou muitas máscaras; fazemos até coisas que não
gostamos buscando sermos aceitos. Entortamo-nos (usando outra imagem de Lewis),
contorcemo-nos, em direção à criatura, tentando encontrar a nossa identidade
nela. Devagar e compulsivamente, o falso “eu” fecha a sua concha dura e
quebradiça ao nosso redor, e o que nos resta é nossa solidão (Imagens partidas. São Paulo: Sepal,
2001, p. 151).
Deus nos criou com uma série de
necessidades naturais a ser satisfeitas para o nosso “bom funcionamento”, tais
como alimentação, segurança, proteção, pertencimento, amor, autoestima,
realização pessoal, de sentir que há um propósito para nossas vidas. De acordo
com Mark e Debra Laaser, todo ser humano tem sete desejos, que são básicos e
universais, quais sejam o desejo de ser ouvido e ser entendido, de ser
afirmado, de ser abençoado, de estar seguro, de ser tocado, de ser escolhido, e
de ser incluído e, é no preenchimento e na satisfação destas necessidades, que
o ser humano valida sua própria existência e pode desfrutar relacionamentos
profundos e ricos com Deus e com as pessoas (The seven desires of every heart. Grand Rapids: Zondervan, 2004, p.
13).
Essas são necessidades naturais, dadas por
Deus, integrantes da nossa estrutura como seres humanos e o nosso estado de
queda não mudou o fato de que necessitamos preenchê-las para conferir
significação para as nossas vidas; são partes componentes da nossa identidade,
contudo, em razão da queda e do nosso coração corrupto pelo pecado (Jr 17),
procuramos a satisfação de tais necessidades nas coisas criadas e nas pessoas
(Rm 1:25), rejeitando o preenchimento das mesmas em Deus e é ai que o inimigo
entra.
13
Ninguém, ao ser tentado, diga: Sou tentado por Deus; porque Deus não pode ser
tentado pelo mal e ele mesmo a ninguém tenta. 14 Ao contrário, cada um é
tentado pela sua própria cobiça, quando esta o atrai e seduz. 15 Então, a
cobiça, depois de haver concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, uma vez
consumado, gera a morte (Tiago 1:13-15 – ARA).
Conforme já exposto acima, em toda
tentação, o inimigo lança sobre nós o engano de identidade, dizendo: “falta
algo em você e você precisa fazer algo a respeito para suprir essa necessidade”.
Como disse Thomas Merton: “Nossas vidas
são formatadas pelas coisas que desejamos” e, assim, o inimigo nos leva,
através do engano de identidade, a satisfazer nossas necessidades básicas e
universais de forma pecaminosa, construindo uma vida marcada pela separação de
Deus e pela idolatria.
Essas necessidades fundamentais devem ser
supridas em primeiro lugar na família; ela é a grande modeladora da nossa
identidade e, por isso, o diabo não tem poupado esforços para desestruturá-la e
destruí-la a fim de que a descendência gerada saia toda deformada
emocionalmente. É através dos nossos pais e figuras de autoridade em nossas
vidas que a nossa identidade vai sendo construída ao longo da infância e
adolescência e o alvo é que essas pessoas saibam passar-nos aceitação,
compreensão, afeto, segurança, benção, direção, afirmação e valor como pessoas,
de modo que a nossa estrutura emocional seja plenamente desenvolvida e saiamos
do egoísmo infantil para uma vida adulta madura de relacionamentos com o
próximo e com Deus.
Com a desestruturação da família seja na
forma de infidelidade, divórcios, abusos físicos, emocionais e sexuais, traumas
ou abandono emocional, o inimigo constrói a iniquidade
da rejeição no indivíduo, isto é, a descendência fica prejudicada por não
ter conseguido atingir o preenchimento dessas necessidades fundamentais
componentes da identidade pessoal, tendo como resultado de todo esse quadro o
surgimento de indivíduos que, apesar de cronologicamente adultos, são
emocionalmente crianças, egoístas, autocentradas, querendo ser o centro das
atenções e querendo que todas as suas necessidades sejam satisfeitas
imediatamente, já que este é o mundo da criança e tais indivíduos não tiveram a
sua identidade liberada para agir e interagir como seres dotados de autonomia
para crescer, multiplicar, intervir no meio ambiente e transformá-lo e
realizarem-se como pessoas.
Na fase da adolescência, tais desejos
fundamentais são sexualizados e o indivíduo carente passa a buscar sua
satisfação através das práticas sexuais; procura-se através da relação sexual e
dos comportamentos sexuais (pornografia, masturbação, fetiches, exibicionismo,
etc.) atingir essas necessidades de afirmação, afeto, segurança, identidade
como uma forma de “compensar”, “reparar” a dor psíquica da rejeição, já que o
sexo é a forma mais profunda de interação e intimidade entre as pessoas. É por
isso que, na mesma proporção em que a família é degenerada, crescem os índices
de perversões e vícios sexuais. Essa “fome emocional” transforma o indivíduo em
um “canibal emocional”; o indivíduo quer se “alimentar” do que o outro tem,
buscando no outro a sua identidade e valor como pessoa, vendo no parceiro e nas
práticas sexuais uma forma de completar aquilo que perdeu, isto é, sua
identidade, que, aos seus olhos, é rejeitada e inferior, transformando, assim,
o parceiro e as práticas sexuais em um verdadeiro ídolo ao qual o indivíduo
investe “adoração”, tempo, recursos, intimidade e nutrindo com ele uma relação
de dependência emocional.
A mesma dinâmica do vício sexual se aplica
ao vício em trabalho, vício de comprar, vício em atividade física, vício em
drogas e substâncias entorpecentes, entre outros; todos são formas de
compensação da dor causada pela perda da identidade e que mantém a pessoa em
dependência emocional quanto à busca de satisfação das necessidades emocionais
básicas.
Tão somente pelo fato da queda original e
da consequente separação de Deus por causa do pecado, o ser humano sofre de uma
“solidão primal”, um vazio que tenta preencher através das coisas criadas e das
pessoas, por isso não há ser humano na face da Terra que não necessite ser
curado de uma forma doentia de amor. Contudo, essa “solidão primal” agrava-se
quando as necessidades fundamentais do ser humano não são preenchidas através
da família, pais, figuras de autoridade, transformando-se em um verdadeiro
cativeiro emocional que empurra a pessoa para todo tipo de satisfação egoísta,
paixões e perversões e, o pior de tudo isso, é que o indivíduo espiritual e
emocionalmente enfermo vai reproduzindo as feridas que recebeu em sua
descendência, ou seja, ele fere com a mesma arma que foi ferido e, assim, a
rejeição, as amarguras de alma e os vícios vão passando de pai para filho.
Pode-se, portanto, entender quão mortífero
é o engano de identidade. O inimigo vem com suas sugestões malignas,
pervertendo nossos desejos básicos de identidade e destino a fim de que os
preenchamos de forma pecaminosa e imprópria e, assim, ele vai distorcendo a
nossa personalidade com o pecado e a iniquidade, com a construção das
fortalezas da mente. A sugestão satânica: “falta algo em você e você precisa
fazer algo a respeito para suprir essa necessidade” é altamente nociva e, para
um indivíduo emocionalmente carente, é mortal, já que acredita e recebe como
“verdade” o fato de ser despido de valor e propósito de vida e transforma-se em
escravo dos seus próprios desejos e emoções vivendo em função de satisfazê-los.
E para manter o indivíduo preso no cativeiro, o inimigo continua a dizer: “você
não pode viver sem isso”, “você não pode viver sem fulano”.
Diante do exposto, reflita e peça ao
Espírito Santo para lhe revelar a verdade: naquelas áreas em que você é
frequentemente tentado e cai, quais os desejos que o diabo está querendo
perverter? O que o inimigo tem insinuado que falta em você relativamente as
necessidades fundamentais de ser ouvido e ser entendido, de ser afirmado, de
ser abençoado, de estar seguro, de ser tocado, de ser escolhido, e de ser
incluído?
Identificar a mentira é o primeiro passo
para a restauração.
Pablo Luiz Rodrigues
Ferreira
rugidodaverdade.blogspot.com
Excerto retirado do texto de minha
autoria UM NOVO IMAGINÁRIO, UMA NOVA MENTALIDADE: REFLEXÕES SOBRE OS
FUNDAMENTOS BÍBLICOS DA RENOVAÇÃO DA MENTE, a ser postado
futuramente no blog rugidodaverdade.blogspot.com
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